terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O pesquisador

Aquela cena vil alarmaria qualquer opinião pública. Um homem que se auto-esquartejava consciente e sedento. Primeiro admirou a arma letal, um instrumento científico de sua busca. Uma faca tão limpa, tão cristalina que poderia fazê-lo ver até dentro de si. Admirou também as parábolas semi-perfeitas lameliformes de seu apetrecho que lhe faria abrir senão os olhos, ao menos, muitas partes de seu corpo.
Iniciou sua busca. Num movimento rápido, irrefletido levantou o braço onde poderia e com toda sua força baixou-o num impulso tão exato que lhe decepou a ponta do dedo, mantendo a unha intata (porém vermelha). Olhou bem aquele pequeno objeto orgânico. Não continha o que procurava. Pensou que talvez fosse pequeno demais, que por esta razão em seu pouco tamanho não coubesse a importância tamanha de sua pesquisa. Cortou o dedo por inteiro. Era o polegar. Teve de cerrar a junta. Sentiu dificuldades para remover o dedo. Mas o fez. Fora do corpo aquilo era quase inidentificável. Certamente não estaria ali o que procurava.
Olhou fixamente para sua mão aleijada. Era bela e graciosa e ao mesmo tempo rude onde se condensava todo o trabalho humano. Absolutamente toda produção humana que se recordava neste momento, de alguma maneira havia passado pela mão. Quantas outras mãos a sua não havia segurado?! Como era bela! Decepou-a.
Olhando aquela mão deficiente, mais pelo braço que lhe faltava que pelo dedo, percebeu que ainda não estava satisfeito com os resultados de sua pesquisa. Sem muitos outros motivos que não o de que o braço sustenta a mão e lhe dá força cortou seu braço quase à altura do ombro. Ficando apenas com um cotoco pendurado. Não preciso dizer que a cena era pavorosa e que jatos de sangue eram lançados. Não digo por que não duvido de sua capacidade de perceber o que é óbvio. Por outro lado, se quisesse construir uma cena limpa, comentaria sobre como a amputação havia sido feita provavelmente dando-lhe uma roupa branca, um chão branco, teto e paredes brancas e as diria limpas no final da pesquisa.
Mas decerto não foi assim que ocorreu. Por isto iniciei dizendo que a situação era chocante. Lembrando dos passos que o haviam levado até a atual situação o homem cortou seu pé. A mão era definitivamente importante, mas o pé metaforiza toda a busca, por levar todo o corpo a (quase) qualquer destino. Desta forma, o pé passou a ter a beleza da mão. Diferente apenas porque possuía uma perna. Pronto. O problema estava resolvido. Triou a perna. E ficou assim: com todo o lado esquerdo deficiente. Não se dava ao trabalho de cortar os dois lados porque sabia que o que procurava, se não encontrasse em um, também em outro não encontraria.
Pôs a ponta da faca junto ao peito. Apertou com tamanha força que lhe perfurou mais que pretendia. Sentiu a faca tremular com batidas constantes. Quando retirou-a puxava junto aquele órgão dos sentimentos. O que ligava uma pessoa à outra. Mas naquele momento não conseguiu enxergar um só sentimento dentro daquele oco pulsante. O que conseguia ver é que, talvez, o músculo ligasse não a outra pessoa, mas a si mesmo. Sentiu-se uma casa, e viu o coração como a rede elétrica. Não! Talvez o coração e as veias fossem o encanamento. Então a rede elétrica seria o cérebro.
Não sabia por onde arrancá-lo. Por isso pegou outro instrumento. Um martelo. Era comum, e não possuía a beleza da faca. Mas ajudaria quebrar o crânio para retirar este novo elemento. Agora sim, sentia que estava próximo daquilo que procurava. Quebrou o crânio e tirou com cuidado os cacos para não ferir o órgão desejado. No cérebro é que estavam contidas todas as informações do corpo. Olhando para aquele objeto, segurando-o na mão, na que sobrara, retornou uma reflexão feita séculos antes: “Ser ou não ser”. Mas, abandonando o motivador da reflexão descobriu que a essência do seu ser não estava ali, e era isso o que buscava.
Tirou do seu corpo todas as partes possíveis e impossíveis. Língua, garganta. Pênis, ânus, dentes. Retirou o pulmão (apenas um), o mesmo com fígado, estômago e enfim, grande parte da pele. Após tê-los removido todos, e muitos outros que aqui não citei, retirou olhos e ouvidos que o ligavam ao mundo. Aí também não encontrou a sua essência. Então como um quebra-cabeça desmontado morreu. Porém, sem a esperança de que uma criança quisesse brincar de montá-lo.
Quando se fez espírito, ainda continuou sua procura. E, de alguma forma, com uma força interna que não sabe de onde, conseguiu explodir e perder toda a sua possível massa. Mas continuava de alguma forma em posse de sua essência. Portanto, não era o espírito. Agora a reflexão tida há pouco tempo atrás fazia ainda mais sentido. Porque mesmo não sendo, possuía alguma existência. Uma existência que transcendia ao ser. Uma existência do não ser. Sua pesquisa havia falhado. Não encontrou o que buscara. Também não encontrara mais resposta, só mais perguntas. Nunca poderia perceber que sua essência não provinha de nenhuma certeza, mas de dúvidas. Se conhecesse esta verdade, duvidaria, ou, se acreditasse, então desapareceria e nunca teria existido.

Jonathan de Oliveira Mendonça
Macaé, 09 de julho de 2010.
04h34